Contos do Larouco III

III. 

Os dias já não começavam à mesma hora. Como se houvesse um manto que se estendesse sobre a manhã, o seu sono estendia-se até ao momento de já não se ouvir qualquer ruído na rua. O Horácio já tinha botado as vacas há muito, a Ana do Quintas já acomodara os animais há umas horas... Nas casas das redondezas já tudo bulia desde a primeira manhã como era natural. Deitar quase com o Sol e com ele, ou antes dele, dar vida à vida. Mas o Lameiras continuava metido consigo, num sono quase mortal e num fechamento que preocupava a aldeia. 

O janelo da cozinha daquela casa já não se abria desde a Lua Nova. E ninguém percebia por que razão é que o rapaz não saía de casa. Tinha vendido as vacas, as ovelhas, as melhores terras e não saía de casa. Pelo menos que alguém o visse. 

A tia Rosa tinha falecido no inverno, quando as geadas arreavam desde que o sol se esconde até voltar a estar alto. A gripe que a apanhou nem deu tempo ao doutor. Nem o padre lhe valeu. Foi com Nosso Senhor de um mal qualquer que lhe atacou os pulmões. E o Lameiras era o seu único filho, o único homem naquela casa desde os doze anos, quando o pai partira para o Brasil para nunca mais. A tia Rosa trabalhou como uma escrava e o Lameiras como o filho de uma escrava. Sobreviveram. Mas um inverno trouxe aquele mal à tia Rosa e não houve quem lhe valesse. O Francisco sentia-se culpado pela morte da mãe. Porque é que a tinha deixado ir acomodar as vacas naquele dia? Escusava bem de apanhar aquela nevada que a molhou até aos ossos, que a gelou até às entranhas e que atirou com ela para a cama de uma vez para sempre! Estes e outros pensamentos atromentaram-no durante vários anos, mas a maneira como agarrava na enxada e rasgava a terra para ela lhe dar alguma coisa começaram a sossegar as pessoas que o viam fazer pela vida que o tinha deixado completamente sozinho. 

O Francisco Lameiras cumpria todas as obrigações comunitárias que lhe competiam sem falhas. Botava a vezeira na vez dele, moía o centeio quando tinha de ser, carrava a lenha para o forno quando a tia Aurora cozia o pão que lhe dava, virava a água para as suas terras quando devia e ajudava a gente da aldeia como o ajudavam a ele. Assim era. 

Todos estranhavam, porém, a solidão do Lameiras que, como vinte e quatro anos, não tinha ainda arranjado namoro. Não tinha ido à tropa por causa de um defeito qualquer que lhe acharam numa das vistas. Não conseguiria dar tiro certo e por isso mandaram-no para casa. Mas ele via bem. Se calhar, não via era tudo o que queria. E quem ele queria já o tinha visto a ele como devia ser. 

Homem afável e de poucas palavras, o Chico Lameiras era baixo e valente, com mãos de pedra e rosto carregado que não atraía muito a simpatia das moças. Os seus olhos deixavam verdadeiramente transparecer a sua alma. Eram transparentes como um rigueiro que vem da serra. Sempre que sentia qualquer olhar feminino sobre si, baixava a cabeça e desandava. Todavia, os olhos da Lucinda já o tinham prendido. E definitivamente. A Lucinda era filha do Lopes e tinha menos dois anos que ele. Quando andava para o Lopes, os melhores momentos do dia passava-os quando era a Lucinda a chegar-lhe o pipo e a deixar-lhe no ar um "Bebe um golo, Chico", de cabeça baixa e com um sorrisinho envergonhado a brilhar-lhe no rosto. Tudo resplandecia à sua volta. Até o trabalho parecia mais leve. Mas não conseguia dar-lhe palavra. Aquele anjo de rosto rosado e cabelo preto havia de ser o seu anjo.

Um dia decidiu-se. Ia falar com a Lucinda, ia dizer-lhe que havia de ser sua mulher, ia dizer-lhe que não podia dizer coisas bonitas porque não sabia, ia dizer-lhe que tinha os olhos como dois sóis... Bem, provavelmente, não ia dizer-lhe nada disto, mas queria falar com a sua Lucinda. Ia ser no domingo. 

Os dias até domingo passaram como os foguetes da festa e, de repente, a missa já tinha acabado. A Lucinda estava linda. Trazia um lenço azul. De braço dado com a mãe, saía da capela mais brilhante do que a Senhora que estava no altar. O Chico saiu logo a seguir e aproximou-se. O pai estava a falar com o Tonho da taberna. Lucinda continuava de braço dado com a mãe e os seus olhos eram agora ainda mais brilhantes sob aquele sol de primavera. 

- Bom dia, Dona Berta! 
- Atão, Chico? - sorriu a senhora. 
- Cá vamos andando como Deus quer... 
- Pois é rapaz! Pois é... 

Os segundos que se passaram pareceram ao Lameiras uma eternidade, mas ele sabia que era a sua oportunidade de falar à Lucinda, de lhe dizer... 

- Ó Lucinda, hoje trazes um lenço muito bonito, sabias? 
Enquanto ela corou e sorriu... 
- Olha-me este! Atão, Chico? Estás-te a meter com a minha Lucinda? Olha que ela não é para o teu bico! - disse o Lopes que se aproximara. 

O Lameiras não sabia onde se havia de meter com a risada que se gerou à volta. No fim da missa, junta-se o povo todo à porta e a vergonha que sentiu foi do tamanho da serra. Levantou o rosto, fixou os olhos na Lucinda que lhe pedia silêncio com um acenar de cabeça mudo, pôs a boina na cabeça e foi para casa com um "Bom dia" agastado. 

Desde aquele final de manhã de um domingo suave de primavera, ninguém mais viu o Lameiras... 

Numa madrugada qualquer, de que ninguém se lembra exatamente, saía a Dona Berta a gritar porta fora que a Lucinda tinha desaparecido. O Lopes vinha logo a seguir de caçadeira na mão. 

O Lameiras e a Lucinda não estavam longe, mas já tinham tudo pronto para fugirem para Espanha. Em pouco tempo apanhariam um barco para o Brasil. Com o tempo, as cartas apaziguariam o coração da Dona Berta, mas não iriam amolecer o peito do Lopes. Aquele maldito havia de morrer!

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