Contos do Larouco II

II. 

 O silêncio cobria a noite. Era assim desde a morte do Gestas. Encontraram-no à entrada do cemitério dois rapazes que vinham do namoro da aldeia vizinha e foram logo a correr a casa da senhora Arminda, viúva que morava uma casita à entrada da aldeia. Dali ao tumulto geral foi um passo muito pequeno. E toda a aldeia de candeia na mão envolvia de luz trémula o corpo despido do Gestas. Só podia ser obra do diabo! Deus os livrasse de todo o mal! E, entre Padres Nossos, as mãos movimentavam-se em cruz repetidamente entre a cabeça e o peito. O corpo, em posição fetal, não apresentava qualquer marca de violência. A pouca luminosidade mostrava um sorriso pintado nos lábios do homem, mas os olhos entreabertos tinham ainda plasmado um evidente sinal pavor. Encostada ao portão, encontrava-se uma pá. 

O Gestas vivia sozinho. Filho único, perdera o pai e a mãe num surto de febre que varrera quase metade da aldeia quando ele cumpria serviço militar em Angola. Nem sequer os enterrou. Estavam vivos, dizia, e tinham ido morar para outra terra que só ele sabia! O sustento vinha-lhe, magro, de uma pensão pela mão esquerda deixada na guerra e da enxada que ainda conseguia equilibrar para cultivar qualquer coisa para si, para o reco e para uma burrita que tinha herdado. 

Depois da morte dos pais, quando regressou à aldeia, o Armindo vinha com um olhar não-olhar. Não falava com ninguém e fugia do contacto com o povo. Com o tempo, recebia a pena dos mais velhos, a indiferença dos da sua idade, o insulto dos jovens e o pavor das crianças. Estava tolo! 

No entanto, fazia surgir no íntimo feminino alguns arrepios. Alto, atlético e bem parecido, merecia também sentimentos profundamente escondidos de muitas das mulheres da terra. Solteiras e casadas. Porém, tudo incofessado e inconfessável. Mas os homens percebiam os olhares das mulheres e apertavam os dentes de ódio daquele desgraçado. 

Quando chegou à aldeia, no seu silêncio, abriu a porta de casa que segurava a chave desde o enterro dos pais. O vizinhos que tentaram aproximar-se com palavras de apoio, os da sua idade, amigos da escola e da juventude antes da tropa, todos receberam um olhar vago sem palavras. Desta forma, afastou toda a aldeia de si. 

Colmou a casa para o inverno e meteu-se lá dentro, saindo apenas de manhã para ir buscar alguma lenha, quando lhe faltava para o lume, e um cântaro de água à fonte. Começaram a vê-lo novamente no fim das neves com a enxada às costas, magro como um fuso a virar a terra numa leira ao pé de casa. 

Ao longe, de um janelo, Luzia seguia, como podia, a luz da candeia mortiça que acendia a única janela da casa do Armindo, à espera de algo mais do que a sua ausência. Amavam-se antes da tropa e ela continuava a ler as cartas da guerra, como se ele ainda lá estivesse. Não lhe dirigiu qualquer palavra quando voltou. Foi para ele invisível como todos os outros. Continuava a amá-lo, todavia. Por isso, numa manhã em que vinha do palheiro com um molho de feno para acomodar o gado, ao ver Armindo de enxada às costas na sua direção, parou, deixou cair o molho de feno e, com os olhos a transbordar de angústia, não aguentou. 

- Que andas a fazer, Armindo? Tu que tens? 
O Gestas levantou os olhos que trazia no chão. 
- Luzia! Como estás bonita! 
- Tu que tens Armindo? Diz-me o que tens? Fala comigo! Já não me queres? - chorou ela. 

Mas o Gestas levou novamente o olhar para o caminho e continuou a receber o desespero de Luzia de costas. Poderia dizer que as lágrimas que nasciam dos belos olhos grandes daquela rapariga feriam profundamente o peito do Gestas. Mas não era assim. Magoavam apenas o chão, pesadas e inúteis. Sem se voltar, Luzia pegou no molho do feno e deixou que o vento lhe secasse o rosto antes de chegar a casa para não testemunhar em demasia a sua desgraça perante a mãe, que não aguentava já o estado da filha. Desde o final da primavera em que regressara, as únicas palavras de Armindo foram para Luzia. E não disse outras. O seu silêncio era o única coisa que lhe restava e o que queria para si. 

Passaram alguns meses. Luzia não teve força para voltar a falar-lhe, esperando, porém, que ele regressasse a si. Pareceu-lhe lúcido no dia em que o abordou. Embora o tivesse sentido triste como um rio, esperava a luminosidade dos seus olhos e a força dos braços que ainda recordava. Sentia-se morrer, porém. 

No final de uma tarde de maio, ao regressar com a burra do Lameiro do Salgueiro Grande, o Gestas encontrou-se com o Filipe Cuco. 

- Atão, Gestas! Olha lá, já que não queres a Luzia? Eu vou-me botar a ela! 
Flamejaram os olhos do Armindo e vibrou o cabo da enxada na testa do tratante que tombou como um carvalho cortado por baixo. Não se mexeu mais. Valeu-lhe vir o Alfredo da Quina que o acudiu a tempo. Botou-o às costas e correu até casa do padre que, depois de lhe atar uns panos à volta da cabeça, o meteu no banco de trás do carro e o chegou à Casa do Povo da vila. Tinha sido por pouco! A ver se se safava! Tinha perdido muito sangue! Disse o doutor depois de lhe coser a testa. Mas o Filipe lá tomou acordo. 

O Gestas como lhe deu assim continuou o seu caminho para casa. 

Foi por esses dias que apareceu morto. Despido. Ninguém queria acreditar que o Filipe o tivesse matado. Não era que não o merecesse, mas não tinha sido ele! Dizia-se. Porque é que o rapaz o haveria de despir! Se o quisesse matar, tinha-lhe dado uma sachada nos cornos, como lhe tinha feito ele! Isto diziam e pensavam os homens. Era coisa do demo! Diziam algumas mulheres. Naquela noite, Luzia ouviu o que acontecera e não saiu de casa. Perdera Armindo há muito tempo. Não fora a sua morte a levá-lo. 

O Cuco fora levado pela Guarda para ser ouvido, uma vez que recaíam sobre ele as mais óbvias suspeitas. No entanto, havia vários homens a jurar a pés juntos que, quando morreu Gestas, o Filipe tinha estado a jogar às cartas na taberna até chegar a notícia do que estava à porta do cemitério. 

Por aqueles dias ninguém saía de casa depois de o Sol se esconder. Andava por ali o diabo! Aquilo era bruxedo ou coisa ruim! 

No dia em que apareceu morto, Armindo tinha feito o que sempre fazia. Quando chegou a casa ao fim da tarde, meteu a burra e acomodou-a. Foi depois botar ao reco. Subiu as escadas e apercebeu-se que a porta estava só encostada... Tinha-se esquecido de a fechar com o trinco, de certeza. Tirou as botas e acendeu o lume. Encostou-se um bocado no escano e adormeceu. Já noite fechada, acordou e agarrou um naco de pão que acompanhou com um chamusco, possível ainda nas brasas que resistiam. Como não tinha vinho pegou no cântaro, que ainda tinha um golo de água, e bebeu-a até ao fim. O sal do chamusco a isso obrigava. Composto, pôs mais uns trochos no lume e deitou-se no escano a vê-lo renascer. Pouco tempo depois de adormecer, dores terríveis atacaram-lhe o estômago. Sentiu-se, depois, a arder. Correu para o bacio e botou fora o que ainda lá restava. A luz da candeia não lhe permitiu ver o sangue que jorrara. As entranhas pareciam ter bebido todo o lume do mundo e o Gestas sentiu-se horrivelmente feliz. Chegara a hora. Não gritava as dores que o corroíam. No seu silêncio, queria morrer sozinho e encontrar-se com os seus sozinho. Negara a morte dos pais para o considerarem louco e o deixarem em paz. Agora iria encontrá-los. Sozinho. 

Mas queria ainda voltar a ver os olhos grandes da sua Luzia. Havia de lhe dizer que estava bonita. Tirou a roupa para entrar puro na terra e, a custo, conseguiu ainda pegar numa pá para abrir o seu próprio buraco sobre a campa de seus pais. Só conseguiu chegar ao portão do cemitério. Estava fechado. Encostou a pá e tentou forçá-lo. Faltaram-lhe, porém, as forças e a vida. Tombou, curvou-se e preparou-se para receber a morte. Levantou a cabeça e sorriu, com a morte a toldar-lhe já a vista. 

- Luzia! Como estás bonita! - disse ainda.

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